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Instituto de Estudos Sócio-Políticos


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Nota Pública Contra a Violência Policial

nota públicaNOTA PÚBLICA CONTRA A VIOLÊNCIA POLICIAL: APÓS PROTESTOS POLÍCIA REALIZA CHACINA NA MARÉ

As favelas da Maré foram ocupadas por diferentes unidades da Polícia Militar do Estado do Rio (PMERJ), incluindo o Batalhão de Operações Especiais (Bope), com seu equipamento de guerra – caveirão, helicóptero e fuzis – ontem, dia 24 de junho. Tal ocupação militar aconteceu após manifestação realizada em Bonsucesso pela redução do valor da passagem de ônibus, como as inúmeras que vêm sendo realizadas por todo o país desde o dia 6 de junho. As ações da polícia levaram à morte de um morador na noite de segunda-feira.

Um sargento do Bope também morreu na operação e a violência policial se intensificou, com mais nove pessoas assassinadas, numa clara demonstração de revide por parte do Estado. Diversas manifestações estão ocorrendo em todo o país e intensamente na cidade do Rio de Janeiro. Nas últimas semanas a truculência policial se tornou regra e vivemos momentos de bairros sitiados e uma multidão massacrada na cidade. No ato do último dia 20, com cerca de 1 milhão de pessoas nas ruas, o poder público mobilizou a Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ), contando com o Choque, Ações com Cães (BAC), Cavalaria, além da Força Nacional. A ação foi de intensa violência contra a população, causando um clima de terror em diversos bairros da cidade.

Não admitimos que expressões legítimas da indignação popular sejam transformadas em argumento para incursões violentas e ocupações militares, seja sobre a massa que se manifesta pelas ruas da cidade, seja nos territórios de favelas e periferias! Tal ocupação das favelas da Maré evidencia o lado mais perverso deste novo argumento utilizado pelos órgãos governamentais para darem continuidade às suas práticas históricas de gestão das favelas, de suas populações e da resistência popular. Sob a justificativa de repressão a um arrastão, a polícia mais uma vez usou força desmedida contra os moradores da Maré, uma prática rotineira para quem vive na favela. É importante observar que, quando o argumento de combate a um arrastão foi usado contra manifestantes na Barra da Tijuca, não houve a utilização de homens do Bope, nem assassinatos, mostrando claramente que há um tratamento diferenciado na favela e no “asfalto”. Repudiamos a criminalização de todas as manifestações.

Repudiamos a criminalização dos moradores de favelas e de seu território. Repudiamos a segregação histórica das populações de favela – negras/os e pobres – na cidade do Rio de Janeiro. Não admitimos que execuções sumárias sejam noticiadas como resultado de confrontos armados entre policiais e traficantes. Não se trata de excessos, nem de uso desmedido da força enquanto exceção: as práticas policiais nesses territórios violam os direitos mais fundamentais e a violação do direito à vida também está incluída nessa forma de oprimir. O governo federal também contribui com o que ocorre nas favelas cariocas, não apenas pela omissão na criação de políticas públicas, mas também por manter as tropas da Força Nacional de Segurança dentro da cidade, reproduzindo o mesmo modelo aplicado pelo governo estadual. As/Os moradoras/es de favelas e toda a população têm o direito de se manifestar publicamente – mas pra isso precisam estar vivas/os. E o direito à vida continua sendo violado sistematicamente nos territórios de favelas e periferias do Rio de Janeiro e de outras cidades do país. Exigimos a imediata desocupação das favelas da Maré pelas forças policiais que estão matando suas/seus moradoras/es com a justificativa das manifestações. Exigimos que seja garantido o direito à livre manifestação, à organização política e à ocupação dos espaços públicos.

Exigimos a desmilitarização das polícias. Assinam a nota:

Acampamento Indígena Revolucionário (AIR), Action Aid Brasil, Aldeia Maracanã, Amálgama Cooperativa Cultural, Anota (Agência de Notícias Alternativas), ARTFEM (Articulação da Frente Anarco-Feminista), Articulação de Mulheres Brasileiras – RJ, Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa – ANCOP, Assembleia Nacional dos Estudantes Livre (ANEL), Associação Angolana OMUNGA, Associação de Docentes do Colégio Pedro II, Arteiras Alimentação do Borel, Associação Centro Comunitário Nova Sepetiba, Associação de Moradores do Jacarezinho, CAMTRA, Centro Acadêmico de Letras da USP (CAELL), CEASM – Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, Central de Movimentos Populares (CMP), CENTRO ACADÊMICO DE LETRAS DA UFRJ (CALET – UFRJ ), Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, Centro de Etnoconhecimento, Centro de Promoção da Saúde (CEDAPS), Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM-CR/UFRJ), CENTRO DE TEATRO DO OPRIMIDO-CTO, Cidadania e Imagem-UERJ, Circuito Carioca de Ritmo e Poesia – CCRP, Círculo Palmarino, Coletivo Antimanicomial Antiproibicionista Cultura Verde, Coletivo da Cidade (DF), Coletivo de Artistas Faixa de Gazah, coletivo Blogueiras Negras, Coletivo Capitalismo em Desencanto, Coletivo Digital – São Paulo, Coletivo Direito de Resistência (Direito-UFRJ), Coletivo de Estudos sobre Violência e sociabilidade – CEVIS-UERJ, Coletivo das Lutas, Coletivo Perifatividade,  Coletivo Político Quem, Comitê Popular da Copa – DF , Comitê Popular Rio da Copa e das Olimpíadas, Coletivo RJ Memória Verdade e Justiça, Coletivo Tem Morador,  Conectas Direitos Humanos, Conselho Nacional dos Direitos Indígenas (CNDI), Conselho Regional de Psicologia (CRP/RJ), CRP/RS, Conselho Regional de Serviço Social (CRESS/RJ), CUCA – FACHA, DCE – FACHA Vladimir Herzog, DCE-UFRJ, Diretório Acadêmico Lima Barreto (Dalb/UERJ), Deputado Federal Chico Alencar (PSOL/RJ), Executiva Nacional de Estudantes de Comunicação Social (ENECOS) , FASE, Fórum de Alunos das Pós Graduações em Sociologia e Ciência Política do Iesp/Uerj, Fórum da Amazônia Oriental – FAOR, O Fórum Comunitário do Porto (FCP), Fórum de Juventudes RJ, Fórum Social de Manguinhos, Frente de Resistência Popular da Zona Oeste, Grupo dos (as) Comunicadores (as) Populares RJ, Grupo Conexão G, Grupo Eco Santa Marta, Grupo ÉFETA Complexo Alemão, Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, IESP (Instituto de Estudos Sócio-Políticos), Instituto Brasileiro De Análises Sociais E Econômicas (IBASE), Instituto de Formação Humana e Educação Popular (IFHEP), Instituto Búzios, Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (DDH), Instituto Equit – Gênero, Economia e Cidadania Global, Instituto de Imagem e Cidadania Rio de Janeiro, Instituto Raízes em Movimento do Complexo do Alemão , ISER, Instituto Telecom, Justiça Global, Kizomba, Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento – LACED/Museu Nacional/UFRJ, Laboratório de Etnografia Metropolitana (LeMetro/IFCS-UFRJ), LAESER (Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatística das Relações Raciais) da UFRJ, Liga Operária, Luta Pela Paz, LUTA POPULAR, Mandato do Deputado Estadual Marcelo Freixo (PSOL/RJ), Mandato Deputado Estadual Gilberto Palmares (PT/RJ), Mandato do Deputado Federal Chico Alencar (PSOL/RJ), Mandato do Vereador Paulo Eduardo Gomes (PSOL/Niterói), Mandato do Vereador Renato Cinco (PSOL/RJ), Mandato do Vereador Henrique Vieira (PSOL/Niterói), Marcha Mundial das Mulheres, Marcha das Vadias Baixada Fluminense, Marcha das Vadias  RJ, Movimento Cidades (in)Visíveis, Movimento Direito Para Quem?, Movimento Honestinas, Movimento Indígena Revolucionário (MIR), Movimento de Luta nos bairros vilas e favelas – MLB, Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM, MST, MUCA – Movimento Unido dos Camelôs, Levante Popular da Juventude, Mariana Criola, Movimento pela Legalização da Maconha, Movimento DCE Vivo (UFF), Movimento Pensa Alemão, Museu da Maré, NPC, Nami Rede Feminista de Arte Urbana, Núcleo de Direitos Humanos da PUC, Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Saúde Mental e Atenção, Núcleo Frei Tito de Direitos, Comunicação e Cultura do PSOL, Núcleo de mulheres da FACHA “Pagu”, Núcleo de Pesquisa sobre Sistema Penitenciário e Violência da UNISUAM, Núcleo PSOL Maré, Núcleo de Resistência Artística – NRA, NÚCLEO DE RESISTÊNCIA POPULAR SOCIALISTA DA TIJUCA, Núcleo Socialista de Campo Grande, Observatório das Favelas, Ocupa Alemão, Ocupa Borel, PACS, PCB, Posse Ação Resistência, Práxis Direitos Humanos, Preserva Mundi, PRÉ-VESTIBULAR PARA NEGROS E CARENTES (PVNC), Psicossocial – NEPS da UERJ, PSTU, Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Rede FALE RJ, Rede de Instituições do Borel, Redes de Desenvolvimento da Maré, Rede Rio Criança, Resistência Indígena Continental, Revista Vírus Planetário, Sepe/RJSou Niterói,  UJC, Tribunal Popular, União por Moradia Popular, Universidade Nômade, Rompendo Amarras, Sodireitos – Belém Verdejar Sócioambiental, Visão da Favela Brasil – Morro Santa Marta

Assinaturas de coletivos devem ser enviadas para: contato@enpop.net

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A truculência da nossa PM

Em vários momentos já mencionamos em nossos textos que a nossa polícia precisa de uma reforma urgentemente. Mas a participação dos movimentos populares, da sociedade civil organizada, partidos, instituições e do cidadão comum é imprescindível para que seja efetivado o anseio da população por uma polícia desmilitarizada.

Há poucos dias (13/06/2013) nossa atenção estava voltada para o caso da jornalista Giuliana, da Folha de São Paulo, que foi atingida no olho em ação da PM, caso que virou campanha da Rede Globo contra a truculência policial.

Nesta última quinta-feira (20/06/2013) mais fatos e situações para reforçar este anseio ocorreram. A polícia se utilizou de uma violência absurda e completamente desnecessária, não havia a menor razão para a forma truculenta com que a polícia atacou os manifestantes. Mas sabemos que a polícia agiu sob ordem política, sabemos que esta força policial agiu sob as orientações do governador. Quem estava na Cinelândia pode relatar que as pessoas estavam reunidas e a polícia chegou jogando bombas. Representantes da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, declaram que já receberam inúmeras denúncias de violações e já encaminharam para a Defensoria Pública e para o Ministério Público. (Representante da Comissão se pronuncia a respeito)

Um outro fato que trouxe a público este brado por uma polícia desmilitarizada e pela reforma policial há algum tempo atrás foi o caso da agressão policial contra o estudante de Licenciatura em Ciências da Natureza da USP, Nicolas Menezes.

O quadro social acabou sendo retratado em quadrinhos pelo chargista Latuff. A agressão foi filmada e postada no Youtube. O vídeo causou espanto e indignação por conta da violência empregada contra o jovem pelo policial chamado André, que chegou a sacar uma arma e apontá-la ao estudante.

Veja a charge abaixo:


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PREPAREM-SE – CONAE / 2014

Politicas_publicas em educacaoEDUCADORES, PREPAREM-SE PARA CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO DE 2014

Por Vivy Faria – 10 de junho de 2013

Desde abril deste ano (2013) pelo Portal Brasil já está sendo noticiada a aprovação do documento com diretrizes voltadas para desenvolvimento da educação no País. A publicação do documento Cenário da Educação Nacional, que servirá de apoio aos debates em todas as conferências preparatórias, municipais e intermunicipais. A aprovação se deu por meio do Fórum Nacional de Educação (FNE), que é o espaço de interlocução entre a sociedade civil e o Estado. Composto por 39 entidades e órgãos ligados à educação brasileira, o fórum avalia os impactos da implementação do Plano Nacional de Educação (PNE) e acompanha, junto ao Congresso Nacional, a tramitação de projetos legislativos referentes à política nacional de educação.

Dentro deste contexto. É importante ressaltar que educadores e gestores devem buscar estar a par de todas as atividades decorrentes do Fórum Nacional de Educação (FNE), e de como participar de forma efetiva de todas as etapas das conferências preparatórias, municipais e intermunicipais para a Conae 2014. Queridos professores não participar e não se pronunciar é dar direitos para que outros decidam por você, por isso sua participação é essencial.

Baixe o Documento

Curso online de A Criança e a Globalização


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Às Comissões Nacional e Estadual (RJ) da Verdade

Curso online de Direitos Humanos

DepoimentoRio de Janeiro, 13 de junho de 2013.

Às Comissões Nacional e Estadual (RJ) da VerdadeO Grupo Tortura Nunca Mais/RJ encaminha, em anexo, depoimento de sua fundadora e atual vice-presidente sobre sua prisão arbitrária e torturas sofridas em agosto/novembro de 1970 nas dependências do DOPS/RJ e DOI-CODI/RJ.

Além da publicização do mesmo, solicita que os 11 (onze) nomes de torturadores reconhecidos por ela, naquele período, naqueles dois estabelecimentos, sejam chamados por estas Comissões a prestar esclarecimentos sobre os crimes pelos quais são responsabilizados neste depoimento.

É da competência dessas Comissões chamar tais pessoas conforme as instâncias em que estes agentes tinham atuado. Esperamos que isto ocorra o mais breve possível.

Desde já, colocamo-nos ao seu inteiro dispor para quaisquer outras informações que se fizerem necessárias.

Atenciosamente
Victória Grabois
Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ

Torturadores reconhecidos por Cecília Coimbra:

Alguns torturadores foram por mim reconhecidos:
1) Major da PM RiscaleCorbaje era o chefe de uma das equipes do DOI-CODI/RJ em 1970 e 1971. Conhecido como Dr. Najib era tenente-coronel, em 1986, quando exercia a função de Assessor de Segurança do BANERJ.
2) Luiz Timótheo de Lima, era agente da Polícia Federal/RJ e lotado no DOPS/RJ, com atuação no DOI-CODI/RJ, em 1970.. Conhecido como Padre foi, nos anos 80, segurança do Hospital do Câncer, da Câmara de Vereadores (gabinete Romualdo Carrasco) e, em 1986, trabalhava no Setor de Segurança da Mesbla.
3) João Câmara Gomes Carneiro era major da Cavalaria do Exército e serviu na 12ª RI-BH, onde comandava sessões de tortura, em 1968 e 1969. Em 1969 e 1970 comandou o DOI-CODI/RJ. Era conhecido como Magafa. Em 1975, foi para a reserva, indo residir em SP, tendo em 1987 uma empresa de segurança.
4) Ailton Guimarães Jorge era capitão intendente do Exército. Serviu na PE da Vila Militar/RJ, de 1968 a 1970 e no DOI-CODI/RJ de 1970 a 1974. Conhecido como Dr. Roberto, esteve envolvido em contrabando. Foi processado e absolvido. Em 1975, foi para Reserva e tornou-se banqueiro do bicho.
5) Alfredo Magalhães, oficial da Marinha. Era do CENIMAR, em 1970 e 1971. Apesar de reformado continuou ligado àquele órgão. Conhecido como Dr. José, Dr. Paulo, Comandante Mike e Alemão.
6) Almicar Lobo Moreira da Silva, tenente médico do Exército. Serviu no DOI-CODI/RJ, de 1970 a 1974. Também era conhecido como Dr. Carneiro.
7) Ary Pereira de Carvalho era tenente coronel da Cavalaria do Exército. Serviu na PE da Vila Militar/RJ e no DOI-CODI/RJ de 1970 a 1974. Em 1985, era adido militar na Embaixada do Brasil em Buenos Aires. Mário Borges era Comissário da Polícia Federal, lotado no DOPS/RJ desde 1966. Era conhecido como Capitão Bob.
9) Jair Gonçalves da Motta era inspetor da Polícia Federal, lotado no DOPS/RJ. Também atuou no CISA, em 1971. Era conhecido como Capitão. Tinha livre trânsito no DOI-CODI/RJ.
10) Humberto Quintas era funcionário do DOPS/RJ desde 1969.
11) Francisco Demiurgo Santos Cardoso, conhecido como “major Demiurgo”. Era Major na Infantaria do Exército, lotado no DOI-CODI/RJ em 1969 e 1970. Nos anos 70 foi transferido para o Comando Militar da VIª RM de Salvador (Bahia).

DEPOIMENTO DE CECILIA MARIA BOUÇAS COIMBRA ÀS COMISSÕES NACIONAL E ESTADUAL DA VERDADE

“Lembra daquele tempo
Que sentir era
A forma mais sábia de saber
E a gente nem sabia?.”
(Alice Ruiz)

Trazer um tempo vivido intensa e ativamente, de forma um tanto frenética, pois tudo nos parecia urgente de ser realizado, sem cair em uma espécie de saudosismo conservador, é um desafio. Desafio que aceito enfrentar ao tentar trazer alguns fragmentos de uma história que nunca será somente minha, mas de uma geração que generosamente sonhou, ousou, correu riscos e, como a peste, foi massacrada e exterminada. Uma geração que, nos anos 60 e 70, apaixonadamente tentou marcar suas vidas não pela “mesmice”, pelo instituído, pela naturalização, mas ao contrário, pela resistência, pela desmistificação, pela criação de novos espaços.

Em 1962, aos 21 anos, quando cursava História, na antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (FNFI da UB), atual UFRJ, entrei para o então clandestino Partido Comunista Brasileiro (PCB). Pertenci aos seus quadros de base até 1967, quando, já discordando de sua linha política, comecei a participar de alguns encontros na então chamada Dissidência do PC na Guanabara (DI).

Fiz parte de uma geração de jovens estudantes e intelectuais que viveu intensamente o alegre e descontraído início da década de 60. Naquele período fortaleceram-se diferentes movimentos sociais que se voltavam para a “conscientização popular”. Anos marcados pelos debates em torno do “engajamento” e da “eficácia revolucionária”, onde a tônica era a formação de uma “vanguarda” e seu trabalho de “conscientizar as massas” para que pudessem participar do “processo revolucionário”. A efervescência política, o intenso clima de mobilização e os avanços na modernização, industrialização e urbanização que configuravam aquele período traziam, necessariamente, as preocupações com a participação popular.

Ressoavam muito próximos de nós os ecos da vitoriosa Revolução Cubana, que passou a embalar toda uma juventude e grande parte da intelectualidade latino-americana, como o sonho que poderia se tornar realidade.

E, veio o golpe civil-militar (1964)1 e o golpe dentro do golpe (AI-5, em 1969), quando a ditadura consolidou a sua forma mais brutal de atuação através de uma série de medidas como o fortalecimento do aparato repressivo com base na Doutrina de Segurança Nacional. Silenciava-se e massacrava-se toda e qualquer pessoa e/ou movimento que ousasse levantar a voz: era o terrorismo de Estado fortalecendo-se.

Naqueles anos aproximei-me de alguns militantes do movimento estudantil – embora já fosse professora de História, continuava na Universidade fazendo a graduação em Psicologia – e participei de alguns encontros do que, logo depois, viria a se constituir como MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Como tinha vida legal, estava casada e tinha um filho, passei a fornecer infraestrutura e apoio a vários companheiros que já estavam, em 1968 e 1969, na clandestinidade, militando em organizações clandestinas e/ou presos.

Em setembro de 1969, quando do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, antes e após a ação, abriguei em minha casa, à Rua Monsenhor Jerônimo, nº 776, aptº 104, no Engenho de Dentro, alguns companheiros que participaram do sequestro: Franklin Martins, José Roberto Spiegner (assassinado em fevereiro de 1970 pela repressão) e Fernando Gabeira, dentre outros.

Através de uma denúncia anônima, vinda do CENIMAR, minha casa esteve monitorada por cerca de um mês, em julho/agosto de 1970, sem que eu sequer desconfiasse.

Em 26/08/1970, à tardinha, o Serviço de Buscas do DOPS/RJ invadiu minha residência, onde apreendeu dezenas de livros e alguns documentos. Fui presa e levada, junto com meu marido José Novaes, pelo inspetor Jair Gonçalves da Mota – que parecia chefiar a operação – para a Sede do DOPS/RJ, à Rua da Relação.

Ao chegar ao 2º andar do prédio do DOPS/RJ, recebeu-nos, com gritos, impropérios e palavrões, o diretor do DOPS/RJ à época, o delegado Mário Borges que me intimidava aos berros: “Fale, sua puta comunista, com quantos você trepou?”.

Fui separada de meu marido, sendo levada para uma sala – naquele 2º andar – onde dois homens que não consegui identificar (um deles era alto, forte, mulato, com cabelos pretos, curtos e bem encaracolados) – revezavam-se no interrogatório. Queriam que eu escrevesse sobre minhas atividades “subversivas” e informasse a origem de um dos documentos encontrado em minha residência. Fiquei sob interrogatório, sendo agredida verbalmente, ininterruptamente, por toda aquela noite e parte do dia seguinte.

À tarde desse segundo dia, 27/08, fui levada para o Depósito de Presas São Judas Tadeu, que ficava no andar térreo do prédio do DOPS. Lá, dormi, na noite de 27 para 28/08, em uma pequena cela – separada das demais presas que eram comuns. Nesta pequena cela encontravam-se algumas presas políticas, entre elas Germana Figueiredo e Maria Auxiliadora Lara Barcelos2.

À tarde do dia 28/08, fui colocada em uma viatura oficial da polícia civil, junto com José Novaes e uma amiga, também presa, Arlete de Freitas. Antes disso, ao sair do presídio e ser levada novamente para o 2º andar, em uma sala, fui interrogada pelo agente do DOPS, Humberto Quintas. Soube do nome, pois esta pessoa havia sido vizinha de Arlete, minha amiga, que já estava presa no DOPS. Na ocasião, vi, em uma dessas salas, um colega da FNFi, Abel Silva e Sônia, sua mulher à época, na condição de presos.

Algemada e encapuzada, fui levada para o DOI-CODI/RJ, no quartel da Polícia do Exército, à Rua Barão de Mesquita, na Tijuca.

Falar daqueles três meses em que fiquei detida incomunicável sem um único banho de sol ou qualquer outro tipo de exercício é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico, abandono, desespero; é falar da “separação entre corpo e mente”, como afirmava Hélio Pellegrino.
A tortura não quer “fazer” falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto. Resistir a isso é um enorme e gigantesco esforço para não perdermos a lucidez, para não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito, em nossa inteligência.

Em especial, a tortura perpetrada à mulher é violentamente machista. Inicialmente são os xingamentos, as palavras ofensivas e de baixo calão ditas agressiva e violentamente como forma de nos anular.

Chegando ao DOI-CODI/RJ, um prédio ao final do pátio da PE, no andar térreo, retiraram-me as algemas, o capuz e fui identificada. Ocasião em que me retiraram relógio, anel, aliança, cordão e cinto e soube, então, estar em um quartel do Exército.

Novamente encapuzada, levaram-me para o andar superior (subi dois lances de escada). Fiquei em uma cela e, após retirarem-me o capuz, entrou um homem que, sem dizer o nome, identificou-se como médico, tirou minha pressão e perguntou-me se era cardíaca. Não possuía qualquer identificação, embora estivesse uniformizado. Mais tarde, ao esquecer um receituário em minha cela, soube tratar-se de Amílcar Lobo, conhecido como Dr. Carneiro, médico e aspirante a psicanalista.

Poucos minutos depois, fui levada encapuzada para o andar térreo, para uma sala que ficava à direita, no final de um corredor: a sala de torturas, conhecida como “sala roxa”. De capuz, tive minhas roupas arrancadas e meu corpo molhado. Fios foram colocados e senti os choques elétricos: no bico dos seios, vagina, boca, orelha e por todo o corpo. Gritavam palavrões e impropérios, chutavam-me. Já haviam identificado o documento encontrado em minha residência: era do MR-8 e da ALN, quando do sequestro do embaixador norte-americano, no ano anterior. Naquele mês de agosto, havia sido sequestrado o embaixador alemão e os serviços de informação pouco sabiam a respeito. Acharam que por ter em mãos aquele documento, eu teria alguma informação sobre o sequestro do embaixador alemão. Exigiam-me, através das torturas, que eu falasse o que não sabia! Em dado momento, não sei precisar quanto tempo decorreu (encontrava-me sem controle da bexiga e do ânus), tiraram-me o capuz e vi vários homens. Mais tarde, identifiquei alguns, como sendo o major da PM Riscala Corbaje, conhecido como Dr. Nagib, o agente da polícia civil Luiz Timótheo de Lima, conhecido como Padre e Jair Gonçalves da Mota, o mesmo que havia participado das buscas em minha residência com a equipe do DOPS/RJ. Havia ainda, um sargento do Exército – o único que usava farda – baixo, gordo, negro, que não consegui saber quem era. Extremamente agressivo, chutava-me, empurrava-me e esmurrava-me.

Fui levada de volta para a cela por um cabo do Exército – usava uniforme, era bem moreno, altura mediana, de porte médio tendendo para magro, cabelos lisos e pretos, parecendo nordestino – era chamado de cabo Gil e, frequentemente, cantava quando vinha, balançando as chaves, nos levar para algum interrogatório e/ou tortura: “Receba as flores que eu te dou / Em cada flor um beijo meu (…)”.

Ao chegar à cela, deparei-me com Arlete de Freitas que ficou ali presa comigo por alguns dias. No dia seguinte, não sei precisar bem, fui novamente levada para a sala de tortura, no andar térreo, e lá vi parte da tortura que meu marido sofria: choques elétricos em todo o seu corpo. Seus gritos acompanharam-me durante anos.

Era muito comum esta tática quando algum casal era preso, além de se tentar jogar um contra o outro em função de informações que pseudamente algum teria passado para os torturadores… “Será mesmo que ele falou isso?”… Era necessário um esforço muito grande para não sucumbirmos…”Se falou está louco!”… era o meu argumento, repetido à exaustão.

Continuavam querendo saber sobre o sequestro do embaixador alemão. Fui novamente despida, e colocada numa sala que ficava ao lado da de torturas. Fui amarrada numa cadeira e colocaram um filhote de jacaré sobre meu corpo. Desmaiei.

Queriam também saber sobre alguns postais encontrados em nossa casa, enviados por amigos que estavam exilados na França. Acusavam-nos de fazer parte do grupo que encaminhava denúncias sobre a ditadura para o exterior.

Os guardas que me levavam, sempre encapuzada, percebiam minha fragilidade… Constantemente praticavam vários abusos sexuais… Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado eram cada vez mais intensos… E, eu me sentia desintegrar: a bexiga e o ânus sem nenhum controle… “Isso não pode estar acontecendo: é um pesadelo… Eu não estou aqui…”, pensava eu. O filhote de jacaré com sua pele gelada e pegajosa percorrendo meu corpo… “E se me colocam a cobra, como estão gritando que farão?”… Perco os sentidos, desmaio…Inicialmente me fizeram acreditar que nosso filho, de 3 anos e meio (José Ricardo Coimbra Novaes) e meu irmão menor (Custodio José Bouças Coimbra)3 haviam sido entregues ao Juizado de Menores, pois minha mãe e meus irmãos estariam também presos. Foi fácil entrar nessa armadilha, pois vi meus três irmãos e minha cunhada no DOI-CODI/RJ (Fernando Bouças Coimbra, Delfim Bouças Coimbra, Emídio Tadeu Bouças Coimbra e sua esposa Dora Cristina Rodrigues Coimbra, casados há um mês). Estes últimos tiveram sua casa invadida e vasculhada. Sem militância política, foram sequestrados da casa de minha mãe, presos e torturados: tinham uma “terrorista” como irmã… Esta era a causa que justificava todas as atrocidades cometidas… A casa de minha mãe havia sido invadida e várias pessoas que lá estavam foram presas e levadas para o DOI-CODI/RJ como meus três irmãos, minha cunhada, meu primo Fernando Antunes Coimbra e meu cunhado João Novaes. Após a casa de minha mãe ser invadida, fizeram uma mis-en-scène em minha residência. Cercaram o quarteirão e metralharam a porta do apartamento, retirando de lá vários exemplares de jornais, afirmando para os vizinhos que se tratava de material “subversivo”. Já estávamos presos há 3 dias.

O barulho aterrorizante das chaves nas mãos de algum soldado que vinha abrir alguma cela… “Quem será dessa vez”… Quando passava por nossa cela e ia adiante respirávamos aliviadas. Alívio parcial, pois pensávamos: “quem estará indo para a “sala roxa” dessa vez”? Esse farfalhar de chaves me acompanhou por muitos anos.

Às 18 horas faziam o “confere” em cada uma das celas: alguns soldados, um oficial – um deles orgulhosamente exibia um anel com uma caveira em cima de duas tíbias, símbolo do famigerado Esquadrão da Morte – e um enorme cão policial nos farejava.
De madrugada, sistematicamente, abriam violenta e estrondosamente as celas e lançavam fortes luzes em nossos olhos, ordenando-nos, aos gritos, que nos levantássemos, pois um novo “confere” iria ser feito… De novo, o cão policial nos farejava…

Em outro momento, ainda em final de agosto, não sei precisar o dia, à noite, fui colocada algemada e encapuzada em um carro de passeio. Quando saltei do carro, sem capuz e algemas, reconheci o prédio, em Copacabana, onde moravam meus amigos Marlene Paiva e Marcos Franco, já falecidos. Subimos no elevador e, diante da porta do apartamento, os homens – eram quatro, os que me levavam -, sacaram suas metralhadoras e tocaram a campainha. Quando Marcos atendeu, empurraram-me para dentro. Vistoriaram a casa e os levaram presos comigo para o DOI-CODI/RJ. Anteriormente vinculados ao PCB, naquela época não tinham militância política. Voltei no carro sem capuz e reconheci o local onde estava presa: a PE da Rua Barão de Mesquita.

Chegando lá, algum tempo depois, fui levada para “assistir” Marlene e Marcos separadamente, serem torturados. Reconheci entre seus torturadores o Dr. Nagib (Riscala Corbaje) e aquele que chamavam de Padre (Luiz Timótheo de Lima).

Nos dias que se seguiram, toda vez que vinham buscar-me na cela para novo interrogatório, encapuzavam-me e as sevícias e abusos sexuais aconteciam por parte dos soldados que me levavam. Num desses dias, ainda em final de agosto, vi e falei com uma amiga, que não sabia tinha sido presa também, Maria Helena do Nascimento Barbosa.

Nas noites em que não tinham “trabalho” para ser feito, algumas equipes de torturadores para “passar o tempo” nos chamavam, apenas as mulheres. Nunca sabíamos se era para novas sessões de tortura, para alguma acareação ou para um “bate papo”, como eles denominavam essas “conversas”. Nelas, alguns deles tentavam nos convencer de que as torturas eram necessárias e nos perguntavam: “vocês falariam alguma coisa se não houvesse essas “pressões”?”… Nesses “bate-papos” tentavam ainda nos jogar umas contra as outras ao insinuarem sobre alguma de nós: “mas vocês têm certeza da militância dela? Vocês confiam mesmo nela?”…

A partir de setembro, fui transferida para uma cela maior – conhecida como Maracanã – onde estive com várias presas: Dulce Pandolfi, Carmela Pezzuti, Tânia, Glória Márcia Percinotto, três moças ligadas à JOC (Juventude Operária Católica) de Volta Redonda e Maria do Carmo Menezes (grávida de cinco meses)4, dentre outras.

Numa madrugada fui retirada da cela, levada para o pátio, amarrada, algemada e encapuzada… Aos gritos diziam que ia ser executada e levada para ser “desovada” como em um “trabalho” do Esquadrão da Morte… Acreditei… Naquele momento morri um pouco… Em silêncio, aterrorizada, me urinei… Aos berros, riram e me levaram de volta à cela… Parece que, naquela noite, não tinham muito “trabalho” a fazer … Precisavam se ocupar…

Algumas mulheres que demonstravam uma maior resistência às torturas eram “premiadas”: sempre estavam sendo chamadas para os “bate-papos” de madrugada e eram utilizadas como cobaias em aulas para novos torturadores. Caso de uma companheira de cela, Dulce Pandolfi, relatado no livro Brasil Nunca Mais, coordenado pela Arquidiocese de São Paulo.

Em outro momento, logo após a prisão de Marcos e Marlene, conheci um outro torturador: baixo, forte, cabelos claros, tendendo para o ruivo, com bigodes: era João Câmara Gomes Carneiro que, soube, tinha vindo de Minas Gerais. Reclamava dos gritos de Marlene, que estava sendo torturada, e da menstruação de Arlete, pois havia manchado sua capa de chuva ao sentar na cadeira onde ela estivera sendo interrogada.

Noutra ocasião, fui levada encapuzada para uma sala que ficava no andar térreo, mas do lado oposto ao da sala de torturas. Parecia o gabinete de alguma autoridade. Lá, um oficial do Exército – estava de farda, mas sem qualquer identificação, como todos os demais – louro, alto, robusto, que, posteriormente, identifiquei como sendo Alfredo Magalhães, me interrogou sobre o sequestro do embaixador alemão. Nesta sala havia um quadro com a caveira e as tíbias cruzadas e as iniciais EM, símbolo do Esquadrão da Morte.

Durante o período de minha detenção – de 28/08 a 11/11/1970 – não tive direito a um só banho de sol, nem contato com qualquer advogado. Quase um mês depois da prisão, assinei, na própria cela, uma ordem de prisão preventiva. Somente a partir daí, pude receber cartas de minha família – censuradas, pois eram cortados os trechos considerados “perigosos”.

No DOI-CODI/RJ estavam proibidas quaisquer visitas e a entrada de quaisquer publicações – livros, revistas, jornais.

Além das pessoas presas já mencionadas, algumas outras foram vistas por mim no DOI-CODI/RJ: Alberto José Barros da Graça, Luiz Sérgio Dias, já falecido, (amigos e companheiros do PCB e da FNFi), Jorge Leal Gonçalves e Eduardo Leite, o Bacuri. Este último, já quase não andava de tão torturado. Era carregado por dois soldados5. Jorge Leal Gonçalves é desaparecido político. Foi visto por mim, em outubro de 1970, não sei precisar o dia, quando era levado para ser torturado. Eu saia da “sala roxa” e ele estava entrando. Muito magro, bastante machucado com marcas roxas no rosto e nos braços. Cruzamos na entrada da sala de torturas; nos olhamos… Seu olhar me acompanhou por muitos anos…

Parece que foi ontem… Esta e muitas outras histórias continuam em nós, marcadas a ferro e fogo… Fazem parte de nossas vidas… Falar delas é ainda duro e difícil… Parece realmente que foi ontem, hoje, agora… Envolvemo-nos, desde então, direta e/ou indiretamente na luta contra a ditadura. Foi, sem dúvida a experiência – não só a da tortura, mas a da militância naqueles anos – mais visceral de toda a minha vida e que me marcou para sempre. Nós mulheres que atuamos – na vanguarda ou na retaguarda, não importa – naquele intenso e terrível período, derrubamos muitos tabus, vivemos visceralmente a presença assustadora da morte, a ousadia de desafiar e enfrentar um Estado de terror, a coragem de sonhar e querer transformar esse sonho em realidade. Acreditávamos… Sim, queríamos um outro mundo, outras relações, outras possibilidades… e queremos hoje.

Alguns torturadores foram por mim reconhecidos:
1) Major da PM RiscaleCorbaje era o chefe de uma das equipes do DOI-CODI/RJ em 1970 e 1971. Conhecido como Dr. Najib era tenente-coronel, em 1986, quando exercia a função de Assessor de Segurança do BANERJ.
2) Luiz Timótheo de Lima, era agente da Polícia Federal/RJ e lotado no DOPS/RJ, com atuação no DOI-CODI/RJ, em 1970.. Conhecido como Padre foi, nos anos 80, segurança do Hospital do Câncer, da Câmara de Vereadores (gabinete Romualdo Carrasco) e, em 1986, trabalhava no Setor de Segurança da Mesbla.
3) João Câmara Gomes Carneiro era major da Cavalaria do Exército e serviu na 12ª RI-BH, onde comandava sessões de tortura, em 1968 e 1969. Em 1969 e 1970 comandou o DOI-CODI/RJ. Era conhecido como Magafa. Em 1975, foi para a reserva, indo residir em SP, tendo em 1987 uma empresa de segurança.
4) Ailton Guimarães Jorge era capitão intendente do Exército. Serviu na PE da Vila Militar/RJ, de 1968 a 1970 e no DOI-CODI/RJ de 1970 a 1974. Conhecido como Dr. Roberto, esteve envolvido em contrabando. Foi processado e absolvido. Em 1975, foi para Reserva e tornou-se banqueiro do bicho.
5) Alfredo Magalhães, oficial da Marinha. Era do CENIMAR, em 1970 e 1971. Apesar de reformado continuou ligado àquele órgão. Conhecido como Dr. José, Dr. Paulo, Comandante Mike e Alemão.
6) Almicar Lobo Moreira da Silva, tenente médico do Exército. Serviu no DOI-CODI/RJ, de 1970 a 1974. Também era conhecido como Dr. Carneiro.
7) Ary Pereira de Carvalho era tenente coronel da Cavalaria do Exército. Serviu na PE da Vila Militar/RJ e no DOI-CODI/RJ de 1970 a 1974. Em 1985, era adido militar na Embaixada do Brasil em Buenos Aires.  Mário Borges era Comissário da Polícia Federal, lotado no DOPS/RJ desde 1966. Era conhecido como Capitão Bob.
9) Jair Gonçalves da Motta era inspetor da Polícia Federal, lotado no DOPS/RJ. Também atuou no CISA, em 1971. Era conhecido como Capitão. Tinha livre trânsito no DOI-CODI/RJ.
10) Humberto Quintas era funcionário do DOPS/RJ desde 1969.
11) Francisco Demiurgo Santos Cardoso, conhecido como “major Demiurgo”. Era Major na Infantaria do Exército, lotado no DOI-CODI/RJ em 1969 e 1970. Nos anos 70 foi transferido para o Comando Militar da VIª RM de Salvador (Bahia).

Solicito, por fim, que as Comissões Nacional e Estadual da Verdade/RJ chamem estas pessoas acima assinaladas para prestar depoimento sobre os crimes cometidos dos quais sou testemunha.

Rio de Janeiro, 13 de junho de 2013

Cecilia Maria Bouças Coimbra


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Sobre as manifestações pelo passe livre

Curso online de Direito Municipal e Urbanístico

tarifa zeroO que eu sei e o que não sei sobre as manifestações pelo passe livre

Por Luiz Eduardo Soares

Diante de um fenômeno que rompe a rotina e surpreende a expectativa de estabilidade, as reações individuais são as mais variadas. Entretanto, de um modo geral, o primeiro impulso é defensivo e visa a auto-conservação. Qualquer mudança nos ameaça porque traz consigo a fantasia de que nosso mundo pessoal tão precário e incerto está em risco e pode ruir a qualquer momento. Essa fantasia provém da radical insegurança que nos é constitutiva, seres mortais que somos. Não apenas a vida humana é frágil como aquilo que chamamos “realidade” é débil e movediço. Para sustentar-se, nossa “realidade” precisa dos outros, do olhar alheio, de seu reconhecimento, de sua confiança, da reiteração de manifestações de amor, amizade e respeito. A “realidade” depende das redes sociais que tecem afetos, valores, símbolos e ideias, tudo isso embrulhado em narrativas cotidianas verossímeis para o conjunto dos interlocutores.

Por isso, a ruptura do movimento contínuo e previsível da vida –que só é contínuo e previsível em nossa fabulação amedrontada, insegura e defensiva—suscita em nós respostas que negam ou exorcizam a mudança. Nesse sentido, há um complô conservador em cada um de nós –e entre nós– contra a mudança, ocorra ela em nós, nos outros ou na sociedade – como escrevi em um capítulo conhecido do Cabeça de Porco.

O que significam, nesse contexto, negar e exorcizar? Negar não significa recusar-se a admitir a existência de fatos, mas sua novidade, sua diferença. Exorcizar quer dizer livrar-se do embaraço que assusta e ameaça nossas crenças, nossa estabilidade, interior e exterior. Qual a melhor maneira de fazer ao mesmo tempo as duas coisas, negar e exorcizar? Explicando. Sobretudo, explicando com as categorias já conhecidas, disponíveis em nosso repertório de crenças e teorias. Quando eu explico um fenômeno novo, o teor de novidade deixa de perturbar meus esquemas cognitivos e valorativos, e as ideias que me ligam aos outros e àquilo que considero a realidade. Minha sanidade, a solidez de minhas verdades, principalmente a solidez de mim mesmo como sujeito, tudo isso salva-se com a explicação, quando, insisto, e apenas quando ela não coloca em dúvida seus próprios pressupostos ou métodos, seu próprio estoque de ideias prontas. O evento, em sua novidade, infiltra um excedente em nossa sensibilidade, em nossas ideias, em nossas emoções e percepções.

Por outro lado, prestando um serviço a nosso aparato de autodefesa, a explicação domestica a diferença, circunscreve seu potencial subversivo e sua força quationadora. Meu argumento é simples: se um evento coloca um problema para meus esquemas mentais e práticos, deixa de fazê-lo quando estes últimos demonstram a capacidade de descrevê-lo (e integrá-lo) sem que haja resíduos, sem que seja necessária a invenção de novas estratégias descritivas e práticas, novas categorias e procedimentos. Na verdade, em vez de conhecimento, estaria em jogo apenas a confirmação de meu repertório prático, moral, ideológico e cognitivo.

Estas reflexões não pretendem ser o elogio à ignorância ou a crítica obscurantista ao conhecimento. Pelo contrário, visam distinguir a tarefa do conhecimento do comodismo classificatório reassegurador, que nos impedem de olhar com os olhos de ver, de escutar para ouvir, projetando menos o que já sabemos ou supomos fazer, e nos abrindo à positividade desafiadora do evento em sua contingência: ação, protagonismos reconfigurando arenas e relações. O ponto a destacar é o seguinte: explicações que funcionam como meras consagrações do que já se sabe –ou se supõe saber—não produzem conhecimento. Se o propósito é conhecer, devemos buscar a compreensão autorreflexiva, a desnaturalização das imagens já constituídas e das descrições correntes. Até porque, nesse campo, todo esforço de entendimento, toda interpretação é também intervenção, é também ação social, uma vez que os intérpretes participamos da atribuição de significado aos fatos. Portanto, a atitude amiga do conhecimento deve exercitar os limites do saber e onde há limites, há pelo menos dois espaços, ou seja, para abordar o que ignoro, devo afirmar o que sei, ou julgo saber.

Contemplemos o objeto que nos interroga, tanto quanto o interrogamos: os eventos em que milhares ocupam as ruas de várias cidades brasileiras, protestando contra o aumento de tarifa do transporte coletivo. O que ousaria dizer que sei a seu respeito? O que não sei?, ou melhor, que boas perguntas posso formular para as quais não disponho de respostas?

I. Sobre o universo temático das manifestações:

Sei que o aumento de tarifas afeta a maioria e que atinge o bolso dos trabalhadores em um momento marcado pelo aumento da inflação. Sei que o poder executivo, nas três esferas (municipal, estadual e federal), adotou mecanismos de proteção aos interesses populares, postergando uma medida que dificilmente seria evitável. Esse fato tornou a elevação dessas tarifas um fato raro, especial, destacado, descolando-o da expectativa internalizada relativa à dinâmica geral dos preços de alimentos e serviços. Sei que o valor do transporte é apenas a cabeça de um imenso iceberg, formado por sua qualidade e pelo verdadeiro drama em que se converteu a mobilidade urbana –e não só em São Paulo e no Rio de Janeiro. Sei, portanto, que a cadeia metonímica no imaginário individual e coletivo transporta os significados do preço da tarifa às jornadas desumanas a que os trabalhadores têm sido submetidos, estendendo-se daí a outros aspectos negativos da experiência popular nas cidades: a precariedade do emprego ou do trabalho, as condições desiguais de moradia, saúde, educação, segurança e acesso à Justiça.

Os elos de contiguidade simbólica e política conectam problemas entre si, acentuando sua marca permanente: a desigualdade. E o fazem em um contexto normativo e institucional, o Estado democrático de direito, no qual o princípio cantado em prosa e verso é a equidade. Por isso, os significados negativos se agravam, acentuando a intensidade emocional em que são apreendidos e comunicados: eles se destacam porque remetem à desigualdade, a qual contrasta fortemento com as expectativas geradas pelo pacto constitucional. Afinal, a conversa sobre cidadania é ou não para valer?

Há ainda cinco tópicos conectados na teia metonímica: (a) os chamados grandes eventos esportivos, e um religioso, que dominam o calendário oficial e governam as agendas dos governos, sinalizando prosperidade e abundância, uma vez que bilhões são investidos, em descompasso com demandas por equidade e qualidade de vida. (b) O modelo econômico parece ter feito o desenvolvimento refém da indústria automobilística, na contramão do que seria racional para reduzir o caos urbano, que obstrui a mobilidade, afetando os interesses de todos, em especial os que dispõem de menos recursos e alternativas. (c) A reputação dos políticos permanece negativa e o ceticismo popular esvazia a legitimidade do instituto da representação, sem que as lideranças dêem mostras de compreender a magnitude do abismo que se abriu –e aprofunda-se, celeremente– entre a institucionalidade política e a opinião da maioria. As denúncias de corrupção se sucedem, endossando a visão negativa que, injustamente, mas compreensivelmente, generaliza-se. (d) O executivo prestigiado, em contexto de dinamismo econômico, pleno emprego e redução de desigualdades, sob a aura carismática de Lula, freiou o desgaste do Estado, já avançado em sua face parlamentar. Quando o modelo começa a dar sinais de que está claudicando, a corrosão contamina a legitimidade (a credibilidade) de todas as áreas do Estado. (e) Tocqueville nos ensinou que os grupos sociais mais dispostos a agir e reagir não são os mais pobres e impotentes, mas aqueles que têm o que perder. Isso significa que os avanços sociais das últimas duas décadas ampliaram a faixa da população potencialmente disposta a resistir ante o risco de perda. Aqueles que ascenderam não entregarão sem luta suas conquistas.

Outro aspecto que me parece decisivo é o acesso à internet, a participação em redes e a fixação de um modelo globalizado de tomada dos espaços públicos como método de democracia direta ou de ação política não mediada por instituições, partidos e representantes. Evidentemente, o modelo remete à ideia clássica da democracia direta como tipo ideal, sem cumpri-lo inteiramente, uma vez que as mediações nunca deixam de atuar, conectando diferentes procedimentos à energia da massa nas praças. O que conta, neste cenário dramatúrgico, são a memória idealizada e a linguagem comum, como se os eventos se citassem mutuamente, construindo uma constelação virtual de hiperlinks. Nesse contexto, tornam-se possíveis o orgulho, a vaidade, a máscara do heroi cívico, a política vivida em grupo como entretenimento cult antipolítico (mas também risco iminente de morte), a experiência gregária fraterna (ante um inimigo tão abstrato e fantasmático quanto óbvio e imediato, com o rosto policial e o sentido da tragédia), experiência que enche o coração de júbilo, exaltando os sentimentos e os elevando a uma escala quase espiritual, a convicção de que se pode prescindir de propostas e metas, ou da negociação de métodos para inscrever o curso da prática na vida da cidade, não só no chão das ruas.

II. Sobre os manifestantes:

São muitos e diversos, e seus propósitos são múltiplos. São grupos semi-organizados que debatem as opções nas redes sociais, são aqueles atraídos para a praça por solidariedade, a qual se fortalece não porque o tema principal, o preço da tarifa, mobilize intensamente, mas porque a brutalidade policial, isto é, a violência do Estado suscita a coesão dos que a repudiam –e, de novo, nesse repúdio estende-se toda a cadeia metonímica referida. Há, é claro, como é natural e inevitável, militantes políticos que percebem a oportunidade de enfraquecer os adversários que estão no poder, considerando-se a visibilidade do país e dos governos estaduais e municipais, na conjuntura em que transcorrem os grandes eventos esportivos e religioso. Há o cidadão comum, revoltado com a tarifa, a (i)mobilidade urbana, a qualidade dos serviços públicos e o rosários de problemas já elencados. Haverá sempre alguns provocadores, animados pelas mais variadas motivações, em um ambiente caracterizado pela falta de lideranças claramente reconhecidas ou consensuais e pela falta de experiência ou de expertise nessa modalidade de ação coletiva, o que favorece a ação de provocadores ou daqueles dispostos a ações violentas, obviamente minoritários e deslocados. Neste ponto, sublinhe-se a falta que faz o PT na oposição, ou a falta que faz qualquer partido popular não cooptado. Por mais que sejamos críticos da forma partido, é indiscutível sua importância na transmissão de experiências acumuladas e na formação da militância. Até a linguagem das massas nas ruas tem sua gramática. A espontaneidade é a energia, mas a organização a potencializa e canaliza.

III. Sobre o Estado, em suas diversas instâncias, em especial, as polícias:

Sei que as polícias militares agiram, sobretudo em São Paulo, com brutalidade criminosa e, desafortunadamente, como é de praxe, seu comportamento foi defendido pelo governador, reproduzindo a postura que tem promovido a impunidade dos policiais que cometem execuções extra-judiciais. Sei também que a polícia militar organizada como exército está condenada a inviabilizar-se como instrumento a serviço da cidadania e da garantia de direitos. Sei que é injusto acusar os policiais, individualmente, ainda que cada indivíduo deva ser responsabilizado por seus atos. Seus atos exprimem a orientação que recebem e a educação corporativa, o que amplia o espectro da responsabilidade por ações criminosas, incluindo as instituições policiais e os governos.

IV. O que não sei:

Este é o tópico decisivo. Não sei o que há a mais nas manifestações (mas sei que há), além do que pude ver, apoiado no que o meu esquema cognitivo me permite ver. Ou seja, não sei o que esse movimento, em sua heterogeneidade, está inventando e nos está dizendo, e está dizendo a si mesmo, ao constituir-se. Não sei que narrativa nova produzirá, ou melhor, já produziu. E aqui estão as perguntas que me parecem chave: por que, no marasmo gerado pelo ceticismo político, tantos vão às ruas, apaixonando-se pela ação coletiva, correndo risco de ferir-se, ou mesmo morrer, ou de ser preso? Qual o novo sentido de um grupo que se forja nas redes e nas ruas, tecendo sua unidade na diferença, caminhando lado a lado, experimentando uma solidariedade de outro tipo, uma fraternidade sem bandeiras, a despeito da (e por causa da) multiplicidade de desejos provavelmente muito diferentes e objetivos difusos?

A força da multidão foi reencontrada pelos jovens e pelos cidadãos que passam perto e se deixam atrair pelo magnetismo de um pertencimento precário, provisório, sem rosto, mas com alma. Que alma tem o movimento? Sim, intuo, suponho, sinto que ele tem alma, isto é, uma unidade toda sua –não verbalizada– e uma personalidade. Intuo que esta alma não seja aquela que se derivaria –como o negativo ou o avesso– de uma comparação com o que sabemos: não sendo, o movimento, organizado ao modo antigo, deduzir-se-ia que seria inorgânico; não tendo uma plataforma clara e uma visão compartilhada que incorporasse as mediações, deduzir-se-ia que seria irracional, despolitizado, quando não selvagem. As visões negativas correspondem ao preenchimento das lacunas de nossa ignorância com as figuras do que já sabemos. Creio que nos conviria optar pela humildade, em vez de precipitarmo-nos em julgamentos e análises. Não me parece razoável dizer o que o movimento não é tomando as gerações passadas por molde e vendo como irrealização e incompletude aquilo que é simplesmente diferente e ainda não conseguimos compreender. Há no movimento magnetismo, há conexão metonímica com questões centrais para o Brasil e o mundo, há um diálogo tácito, consciente e inconsciente, com a humanidade em escala planetária, com nossa memória social e com a tradição de nossa cultura política. Há coragem de perder o medo e de renunciar à apatia. Há, nesses eventos, no movimento pelo passe livre, ou dê-se a ele o nome que se queira, a disposição de aprender, fazendo. Há coragem para criar e, portanto, para errar. De nossa parte, os anciãos e os governantes, autorreferidos e inseguros, ameaçados em nossos esquemas cognitivos e práticos, caberia escutar, acompanhar, respeitar, repelir a violência policial (e qualquer outra), admitir nossa ignorância, e considerar a hipótese de que algo novo esteja surgindo e essa novidade talvez seja virtuosa e republicana, quem sabe a reivenção da política democrática. Talvez a melhor forma de escutar seja tentar unir-se ao coro, na rua. Para (re)aprender a falar.

Luiz Eduardo Soares é um antropólogo, cientista político e escritor brasileiro. Um dos maiores especialistas em segurança pública do país.


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‘Guerra às drogas

 a_guerra_contra_as_drogas_e_mais_ma_do_que_drogas_autocolante_automovel-r7b6898c96f9546cc9db864fba731acc9_v9wht_8byvr_216Quando o remédio é pior do que a doença’

Texto de Luís Brasilino & Flavio Lobo

No Brasil, a superlotação das cadeias não pode ser separada da visão proibicionista e punitiva da justiça criminal com relação às drogas. Nos EUA, um terço dos presos cumpre penas relacionadas ao uso de substâncias ilegais. Para Ethan Nadelmann, a guerra às drogas gera mais problemas do que as drogas em si.

Ehan Nadelmann é fundador e diretor executivo da Drug Policy Alliance, organização não governamental sediada nos Estados Unidos que se dedica à promoção de alternativas à chamada ‘guerra às drogas’. Defensor de políticas que passam pela descriminalização e regulação das drogas atualmente ilícitas, Nadelmann foi um dos estrategistas das campanhas em favor da legalização do uso recreativo da maconha que conquistaram vitórias históricas, em novembro de 2012, em referendos realizados nos estados de Washington e Colorado.

Em maio, numa rápida visita ao Brasil, Nadelmann apresentou, em Brasília, uma das palestras mais aguardadas no Congresso Internacional sobre Drogas 2013. Depois de narrar os avanços em curso em vários estados norte-americanos, ele alertou para os riscos de retrocesso representados por um projeto de lei (PL) em tramitação no Congresso brasileiro. Na visão dele, se transformado em lei, o PL n. 7.663/2010, que se propõe a enfrentar a questão das drogas com internações forçadas para dependentes e aumento de penas de prisão para traficantes, não trará os resultados prometidos e agravará os problemas.

Duas semanas depois de Nadelmann ter concedido esta entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil, o PL, de autoria do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), foi votado e aprovado na Câmara. Enquanto prossegue a tramitação, que ainda depende da aprovação do Senado, as informações, análises e alternativas expostas nestas páginas podem ajudar a esclarecer um tema vital, frequentemente obscurecido por desconhecimento e preconceito.

DIPLOMATIQUE – Por que você defende o fim da guerra às drogas?

ETHAN NADELMANN – A política atual para as drogas, a guerra às drogas, está claramente fazendo mais mal do que bem. E ao mesmo tempo não consegue atingir seu objetivo central: reduzir os malefícios das drogas em nossa sociedade. Como norte-americano, há em nossa história a experiência das pessoas sendo convencidas por argumentos sobre moralidade, proteção das crianças e benefícios econômicos… e decidindo proibir o álcool. Essa experiência se provou malsucedida na redução dos problemas com as bebidas, mas incrivelmente bem-sucedida em fortalecer o crime organizado, aumentar a violência, a corrupção, o desrespeito à lei, as violações de liberdades civis, de direitos humanos, o sobre-encarceramento e a dispersão das forças policiais. E tornando o álcool mais perigoso, porque as drogas produzidas ilegalmente assim o são. Atualmente, vemos que um número tremendo de pessoas continua usando drogas ilegais. Há tantos consumidores quanto há cem anos, quando não tínhamos um sistema global de proibição. E vemos violência, crime, corrupção, mercado negro, violações de liberdades civis e direitos humanos e altos níveis de encarceramento. Nos Estados Unidos, 2,3 milhões de pessoas estão atrás das grades, das quais 500 mil especificamente por violar a lei de drogas, e outras centenas de milhares por violações de condicional relacionadas ao uso, por roubar para sustentar o consumo e por violência ligada às drogas. É mais de um terço da população carcerária total. Os Estados Unidos têm menos de 5% da população mundial e quase 25% dos presos. Somos o primeiro no mundo em cidadãos encarcerados per capita. Mas nem sempre foi assim. Há quarenta anos, as taxas de encarceramento eram mais próximas da média mundial. Em 1980, tínhamos 500 mil pessoas atrás das grades, 50 mil por violação à lei de drogas.

Agora, vindo ao Brasil, vejo que o país está a ponto de decidir que parte da política deve ser prender infratores da lei de drogas não violentos, cuja única violação é portar, consumir ou vender uma pequena quantidade para outro adulto. E vocês vão encher suas prisões, que já são superlotadas… Ver o Brasil seguir os passos dos Estados Unidos parece loucura.

DIPLOMATIQUE – Quais são os principais danos gerados pela política de guerra às drogas?

NADELMANN – Há três diferentes formas de ver os estragos. Na América Latina, Caribe, oeste da África e em partes da Ásia, a principal questão é a violência, a corrupção e o fortalecimento do crime organizado. O segundo problema é a aids. Em partes da Ásia, em algumas cidades dos Estados Unidos, na ex-União Soviética e na Europa oriental, o principal fator de transmissão da doença é o compartilhamento de seringas infectadas e depois a contaminação dos parceiros sexuais e das crianças. Isso é responsabilidade quase exclusiva da proibição. Inclusive, é a razão para a política de drogas estar mudando um pouco na Ásia. Indonésia, Malásia, China, Vietnã e Irã têm programas de trocas de agulhas para impedir o [contágio por] HIV. A terceira consequência, especialmente nos Estados Unidos, é o sobre-encarceramento, do ponto de vista dos direitos humanos, e o alto custo. Gastamos entre US$ 50 bilhões e US$ 100 bilhões por ano na guerra às drogas.

Mas será que, apesar desses danos, a política atual está tendo sucesso na redução do uso de drogas? Bom, sabemos que quando você torna algo ilegal o uso é reduzido. Portanto, há um benefício da proibição nisso. O problema é que, para as pessoas que usam drogas, é muito mais perigoso. Elas precisam comprar no mercado negro, de criminosos, pagam mais caro, e as drogas em si são mais perigosas.

DIPLOMATIQUE – O que sustenta a ideologia da guerra às drogas?

NADELMANN – Se pedirmos ao público para colocar as drogas em uma escala de periculosidade, eles vão pôr álcool e tabaco embaixo, depois as drogas farmacêuticas e no topo maconha, cocaína e heroína. Para um cientista, seria tabaco e álcool no topo, drogas farmacêuticas no meio e a maconha embaixo. Há muita diferença, e isso se deve à falta de conhecimento do público. Álcool e tabaco são conhecidos, por isso não despertam tanto temor. Nos Estados Unidos, graças ao aumento desse conhecimento, a mudança da opinião pública com relação à maconha vem sendo impressionante. Em 2006, 36% eram a favor da legalização da maconha e 60% eram contra. Em 2012, 50% passaram a ser a favor e 46% contra. Em cinco anos! Há muitas razões para isso ter acontecido. A principal é geracional. Há trinta anos, os mais velhos não sabiam a diferença entre maconha e heroína. Agora, se você tem 65 anos, há 50% de chance de que você tenha fumado maconha. Além disso, muitos políticos, juízes etc. já dizem: ‘É, eu fumei quando jovem’. E temos três presidentes em sequência… Clinton, que disse que não tragou; Bush, que nega, mas foi dedurado por um amigo; e Obama, que, perguntado se havia tragado, respondeu: ‘Claro, não é esse o ponto?’. Isso muda a discussão. Além disso, as pessoas estão se familiarizando com o fato de que, nos Estados Unidos, há quase 2 milhões de pacientes usando a maconha para fins medicinais. A mídia, que sempre apontava o adolescente que fugia da escola como o fumante de maconha, começou a apresentar o idoso doente, pacientes de câncer… Nos anos seguintes a 1996, data que marcou o início do processo de liberação do uso medicinal da maconha no país, graças a uma lei estadual aprovada na Califórnia, todo programa de televisão teve um episódio sobre o assunto. Estava almoçando com um amigo hoje e ele me perguntou: ‘Você consegue imaginar um fumante de maconha na novela [do Brasil], um personagem simpático, uma mãe, uma avó, que, doente, é convencida pelo filho a fumar? E então ela volta a poder comer novamente, se sentir melhor…?’. Isso teria um impacto enorme, e foi o que aconteceu nos Estados Unidos.

DIPLOMATIQUE – Qual é sua opinião sobre as campanhas para legalizar o consumo, mas não o tráfico?

NADELMANN – De uma perspectiva intelectual há algo inconsistente nisso. Mas de uma perspectiva política e social é essencial. Existem defensores da guerra às drogas e da legalização total que dizem: a pior coisa é a política inconsistente, que descriminaliza o consumidor e criminaliza o tráfico. Minha resposta é: melhor uma política inconsistente, mas mais humana. Além disso, a política atual me parece imoral para aquele cuja única violação é possuir ou consumir a droga. Ele tem sua liberdade retirada somente por causa de algo que colocou em seu corpo, mesmo sem ferir outra pessoa.

DIPLOMATIQUE – Como foi a estratégia da campanha nos referendos realizados em 2012 que liberaram a maconha em Washington e no Colorado?

NADELMANN – Antes de apresentar a iniciativa do referendo, fizemos pesquisa de opinião pública. Começamos vendo se a maioria era a favor. E olhamos bem de perto: fortemente a favor, mais a favor do que contra… O assunto seguinte é: o que o público pensa sobre isso. Quais são os argumentos, e até mesmo quais são as palavras. Devemos dizer cultivar ou plantar? É melhor falar que vai ser como cigarro ou como álcool? Se permitirmos que as pessoas cultivem plantas em casa, isso precisa ser privado? No Colorado, por exemplo, o público via o plantio como a nudez em público. OK fazer na privacidade de casa, mas não quero que minha criança olhe pela janela no quintal e veja você pelado ou cultivando maconha…

O próximo passo é, sabendo que ao se aproximar o dia da eleição as pessoas ficam com medo da mudança, descobrir qual é nosso argumento mais poderoso. E este é quase sempre o mesmo. A defesa da liberdade individual não funciona muito bem. Os dois elementos mais fortes são: queremos que a polícia se concentre em crimes de verdade e gostamos da ideia de que o governo pode gastar menos dinheiro tentando combater as drogas e arrecade dinheiro taxando-as. Relacionado a isso também há o argumento: vamos tirar o poder dos criminosos.

A seguir, a questão é: quem é o porta-voz mais eficaz? Normalmente se pensa no chefe de polícia aposentado. Mas às vezes é só uma mãe de classe média dizendo: ‘Sabem, me preocupo com meu filho usando maconha, mas não vejo a lei funcionando e acho que a gente apenas precisa tentar uma abordagem diferente’. Em Washington, isso foi muito eficiente.

DIPLOMATIQUE – Essa luta contra a guerra às drogas vai ser longa, não é?

NADELMANN – Sabia quando comecei que esse era um esforço multigeracional. Nos Estados Unidos, o movimento pela reforma da política de drogas, em 2013, está na mesma posição histórica do movimento gay nos anos 1980, do movimento dos direitos civis nos anos 1960, do movimento das mulheres nos anos 1910 ou do movimento abolicionista nos anos 1850. O público continua amedrontado e desinformado.

DIPLOMATIQUE – O que você pode dizer sobre a legalização de outras drogas além da maconha?

NADELMANN – Imagino todas as drogas e os modos de tratá-las ao longo de um espectro, que vai da modalidade mais punitiva, como em Cingapura e na Arábia Saudita, para as políticas de mercado mais aberto, como eram os cigarros nos anos 1960. O que temos de fazer é, por um lado, com as drogas ilegais, caminhar para o centro do espectro, reduzindo as partes punitivas da lei. Por outro, com álcool e tabaco, começar a aumentar os impostos, as regulações e as restrições, e a fazer campanhas contra o uso. O esforço é para estabelecer uma política regulatória de saúde pública para reduzir os impactos negativos das drogas, sem introduzir o mercado negro e os criminosos. Portanto, uma reforma da política de drogas deve tentar trazer as duas pontas desse espectro o mais próximo possível.

Não acho que legalizar todas as drogas seja a melhor política. O melhor é reduzir os estragos provocados por elas (doenças, vício, morte e crime) e os danos gerados pelas políticas proibicionistas: crime organizado, corrupção, violência, superlotação de cadeias… O modelo ideal está em algum lugar no meio, entre a política reguladora, como hoje é com álcool e tabaco, e uma política proibicionista que respeita os direitos humanos, com foco na saúde pública e que, ainda que as mantenha ilegais, não signifique mais uma guerra às drogas.

Com a maconha, está claro que o melhor é a legalização com uma política regulatória, como são os cigarros hoje. Porém, não digo que devemos vender heroína ou cocaína como álcool ou cigarros. Do ponto de vista intelectual, é um argumento muito interessante, porque é bom pensar na legalização de todas as drogas. Isso ajuda a entender quanto nossos problemas são resultado das políticas proibicionistas, e não das drogas em si.

É um erro ficar focado na legalização e ignorar todas as opções que estão no meio. Por quê? Primeiro, porque politicamente não há nenhum apoio para isso em nenhum país. Segundo, porque não sabemos se legalizar todas as drogas acarretaria um aumento dramático no vício. Não sabemos. Mas não importa, porque isso não vai acontecer mesmo, vai ser passo a passo. O que isso significa em termos concretos? Basicamente, penso que a próxima geração vai ver três processos. O primeiro é a regulação da maconha legalizada, removendo-a do sistema criminal. O segundo é o que podemos chamar do modelo português: terminar com a criminalização da posse de pequenas quantidades de drogas, comprometendo-se com o tratamento do vício como um assunto de saúde. Quando você pára de criminalizar a posse, o número de usuários não sobe nem desce. Mas caem os crimes, as prisões, as overdoses, a corrupção… O terceiro processo – esse é o mais difícil – é tentar, para as pessoas que estão absolutamente determinadas a comprar suas drogas, encontrar uma forma de que elas possam obtê-las de uma fonte legal. A Suíça começou a adotar esse modelo há vinte anos. Lá, os viciados em heroína ouviram do Estado: “Bom, se você é viciado e tentou de tudo, pode vir a uma clínica até três vezes por dia e obter heroína pura”. Nesses lugares, eles também encontram serviços médicos e ajuda para conseguir um emprego. E teve muito sucesso. Alemanha, Holanda, Dinamarca e Inglaterra agora têm uma política similar. É só um pequeno número de pessoas. Mas elas param de ser presas, de se envolver em crimes, sua saúde melhora e a vida se estabiliza. Essa é a próxima fronteira. Se formos bem-sucedidos nessas três partes, vamos continuar tendo um problema de drogas, mas será bem pequeno.

DIPLOMATIQUE – Qual é sua sugestão para os ativistas contra a guerra às drogas no Brasil?

NADELMANN – A primeira coisa é lembrar que é uma luta de longo prazo e, então, você precisa de uma estratégia de longo prazo. Por exemplo, se seu Congresso aprovar essa lei terrível, isso será um retrocesso, mas não é o fim, é um recuo, e todo retrocesso apresenta novas oportunidades e novos aliados. Também é preciso ser sofisticado na argumentação. Se você for usuário de maconha, seja um consumidor responsável. É preciso despertar empatia. Você precisa estar disponível para se pôr no lugar de outro ser humano, do policial, do pai ou do legislador assustado. E é preciso saber que, nos últimos quarenta anos, o mundo como um todo está se movendo em uma nova direção.

Luís Brasilino

Jornalista e editor do Le Monde Diplomatique Brasil

Flavio Lobo

Jornalista, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP e consultor na área de comunicação

artigo :
BRASILINO, L. & LOBO, F. ‘Guerra às drogas: quando o remédio é pior do que a doença’. Disponível em Le Monde Diplomatique Brasil, ed.71. Acesso em 07 jun 2013.


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Maria-Vai-Com-As-Outras

maria vai com as outrasHoje o pessoal da page #NãoMeCalarei falou na lata uma verdade que já sabíamos há muito tempo, mas desta vez a galera vai ouvir e de repente reflete sobre a situação e até comecem a perceber que há uma necessidade intensa, profunda e gritante de mudarmos nossa postura diante das situações, porque agora a constatação de que o brasileiro é uma grande Maria-Vai-Com-as-Outras está embasada em um estudo de um cientista social sério.

Acho que também podemos atribuir muito disso à nossa mídia e às instituições educacionais, pois quem se incomoda e não somente reclama, como exige mudanças, é sempre colocado como intransigente perante os outros…

A explicação para o excesso de reclamação e para a falta de reação já virou estudo aqui no Brasil. O resultado não apresentou nenhuma novidade: O brasileiro não tem o hábito de protestar no cotidiano. A corrupção dos políticos, o aumento de impostos, o descaso nos hospitais, as filas imensas nos bancos e a violência diária só levam a população às ruas em circunstâncias excepcionais. Por que isso acontece? A resposta a tanta passividade pode estar em um estudo de Fábio Iglesias, doutor em Psicologia e pesquisador da Universidade de Brasília (UnB). Segundo ele, o brasileiro é protagonista do fenômeno “ignorância pluralística”, termo cunhado pela primeira vez em 1924 pelo americano Floyd Alport, pioneiro da psicologia social moderna.

“Esse comportamento ocorre quando um cidadão age de acordo com aquilo que os outros pensam, e não por aquilo que ele acha correto fazer. Essas pessoas pensam assim: se o outro não faz, por que eu vou fazer?”, diz Iglesias. O problema é que, se ninguém diz nada e conseqüentemente nada é feito, o desejo coletivo é sufocado. O brasileiro, de acordo com Iglesias, tem necessidade de pertencer a um grupo. “Ele não fala sobre si mesmo sem falar do grupo a que pertence.”

Iglesias começou sua pesquisa com filas de espera. Ele observou as reações das pessoas em bancos, cinemas e restaurantes. Quando alguém fura a fila, a maioria finge que não vê. O comportamento-padrão é cordial e pacífico. Durante dois meses, ele analisou o pico do almoço num restaurante coletivo de Brasília. Houve 57 “furadas de fila”. “Entravam como quem não quer nada, falando ao celular ou cumprimentando alguém. A reação das pessoas era olhar para o teto, fugir do olhar dos outros”, afirma. O aeroviário carioca Sandro Leal, de 29 anos, admite que não reage quando vê alguém furar a fila no banco. “Fico esperando que alguém faça alguma coisa. Ninguém quer bancar o chato”, diz.

Iglesias dá outro exemplo comum de ignorância pluralística: “Quando, na sala de aula, o professor pergunta se todos entenderam, é raro alguém levantar a mão dizendo que está com dúvidas”, afirma. Ninguém quer se destacar, ocorrendo o que se chama “difusão da responsabilidade”, o que leva à inércia.

Mesmo quem sofre uma série de prejuízos não abre a boca. É o caso da professora carioca Maria Luzia Boulier, de 58 anos. Ela já comprou uma enciclopédia em que faltava um volume; pagou compras no cartão de crédito que jamais fez; e adquiriu, pela internet, uma esteira ergométrica defeituosa. Maria Luzia reclamou apenas neste último caso. Durante alguns dias, ligou para a empresa. Não obteve resposta. Foi ao Procon, mas, depois de uma espera de 40 minutos, desistiu de dar queixa. “Sou preguiçosa. Sei que na maioria das vezes reclamar não adianta nada”, afirma.

O “não-vai-dar-em-na-da” é um discurso comum entre os “não-reclamantes”. O estudante de Artes Plásticas Solano Guedes, de 25 anos, diz que evita se envolver em qualquer situação pública. “Sou omisso, sim, como todo brasileiro. Já vi brigas na rua, gente tentando arrombar carro. Mas nunca denuncio. É uma mistura de medo e falta de credibilidade nas autoridades”, afirma.

A apatia diante de um escândalo público também é freqüente no Brasil. Nas décadas de 80 e 90, o contador brasiliense Honório Bispo saiu às ruas para lutar pelas Diretas Já e pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor. Caso que apenas se concretizou pelo massivo uso da imprensa. Estudiosos acreditam que o Impeachment nunca aconteceria se a mídia não colocasse no ar o ataque massivo ao presidente: 10 das 24 horas de programação das emissoras nas semanas anteriores ao ato divulgavam a ideia das Diretas Já e Impeachment.

O estudo da UnB constatou que a “cultura do silêncio” também acontece em outros países. “Portugal, Espanha e parte da Itália são coletivistas como o Brasil”, afirma o psicólogo. Em nações mais individualistas, como em certos países europeus e a vizinha Argentina, o que conta é o que cada um pensa. “As ações são baseadas na auto-referência”, diz o estudo. Nos centros de Buenos Aires e Paris, é comum ver marchas e protestos diários dos moradores. A mídia pode agir como um desencadeador de reclamações, principalmente nas situações de política pública. “Se o cidadão vê na mídia o que ele tem vontade de falar, conclui que não está isolado”, afirma o pesquisador.

O antropólogo Roberto DaMatta diz que não se pode dissociar o comportamento omisso dos brasileiros da prática do “jeitinho”. Para ele, o fato de o povo não lutar por seus direitos, em maior ou menor grau, também pode ser explicado pelas pequenas infrações que a maioria comete no dia-a-dia. “Molhar a mão” do guarda para fugir da multa, estacionar nas vagas para deficientes ou driblar o engarrafamento ao usar o acostamento das estradas são práticas comuns e fazem o brasileiro achar que não tem moral para reclamar do político corrupto. “Existe um elo entre todos esses comportamentos. Uma sociedade de rabo preso não pode ser uma sociedade de protesto”, diz o antropólogo.

O sociólogo Pedro Demo, autor do livro Cidadania Pequena s (ed. Autores Associados), diz que há baixíssimos índices de organização da sociedade civil – decorrentes, em boa parte, dos também baixos índices educacionais. Em seu livro, que tem base em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o sociólogo conclui que o brasileiro até se mobiliza em algumas questões, mas não dá continuidade a elas e não vê a importância de se aprofundar. Um exemplo é o racionamento de energia ocorrido há doze anos: rapidamente as pessoas compreenderam a necessidade de economizar. Passada a urgência, não se importaram com as razões que levaram à crise. Para o sociólogo, além de toda a conjuntura atual, há o fator histórico: a colonização portuguesa voltada para a exploração e a independência declarada de cima para baixo, por dom Pedro I, príncipe regente da metrópole. “Historicamente aprendemos a esperar que a decisão venha de fora. Ainda nos falta a noção do bem comum. Acredito que, ao longo do tempo, não tivemos lutas suficientes para formá-la”, diz Demo.

A historiadora e cientista política Isabel Lustosa, autora da biografia Dom Pedro I, um Herói sem Nenhum Caráter (ed. Companhia das Letras), acredita que os brasileiros reclamam mas têm dificuldades de levar adiante esses protestos sob a forma de organizações civis. “Nas filas ou mesas de bar, as pessoas estão falando mal dos políticos. As seções de leitores de jornais e revistas estão repletas de cartas de protesto. Mas existe uma espécie de fadiga em relação aos resultados das reclamações, especialmente no que diz respeito à política.” Segundo Isabel, quem mais sofre com a falta de condições para reclamar é a população de baixa renda. Diante da deterioração dos serviços de educação e saúde, o povo fica sem voz. “Esses serviços estão pulverizados. Seus usuários não moram em suas cercanias. A possibilidade de mobilização também se pulveriza”, diz.

Apesar das explicações diversas sobre o comportamento passivo dos brasileiros, os estudiosos concordam num ponto: nas filas de espera, nos direitos do consumidor ou na fiscalização da democracia, é preciso agir individualmente e de acordo com a própria consciência. “Isso evita a chamada espiral do silêncio”, diz o pesquisador Iglesias. O primeiro passo para a mudança é abrir a boca.


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10% do PIB para Educação Pública

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10 pib jáPNE é aprovado em comissão do Senado

O relatório do PNE (Plano Nacional de Educação) 2011-2020 foi aprovado nesta terça-feira (28) na CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do Senado. O relatório, do senador José Pimentel (PT-CE), favorável ao projeto de lei da Câmara 103/2012, destina 10% do PIB (Produto Interno Bruto) para políticas educacionais e estabelece uma série de obrigações até 2020, entre elas a erradicação do analfabetismo, oferecimento de educação em tempo integral e prazos máximos para alfabetização de crianças.

Após receber 83 emendas na CAE, o projeto ainda será analisados pela CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) e pela CE (Comissão de Educação), antes de ser votado em plenário.

Pimentel optou por incorporar ao PNE parte das disposições do PL 5.500/2013, em tramitação na Câmara, que destina 100% dos royalties do petróleo para a educação e mais 50% do Fundo Social do petróleo extraído da camada pré-sal. O senador quer vincular à educação todos os royalties do petróleo dos novos contratos de exploração celebrados a partir de 3 de dezembro do ano passado.

A proposta inicial do governo destinava 7% do PIB ao setor educacional, mas os deputados fixaram este índice como meta intermediária, a ser alcançada no quinto ano de vigência do PNE, e prevendo, ao fim do plano, o percentual de 10% do PIB. Na CAE, José Pimentel chegou a retirar a meta intermediária de 7% de seu relatório, mas voltou atrás, depois que entidades ligadas ao setor educacional protestaram.

Além de vincular à educação os royalties do regime de partilha e os de concessão a partir de dezembro de 2012 , o texto do relatório aprovado hoje também especifica quais ações o governo federal vai financiar com os recursos, na rede de educação nacional e internacional. A definição abrange programas como Ciências sem Fronteiras, Prouni (Universidade para Todos) e o Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego), além de instituições filantrópicas.

Alguns senadores já avisam que pretendem discutir melhor a matéria nas próximas comissões.

Manobra Contábil

Após lutar contra a meta de 10% do PIB para educação, o governo federal optou por uma manobra contábil para maquiar a conta. O novo parecer do relator do PNE altera a redação aprovada na Câmara dos Deputados, que previa 10% de investimento federal em educação pública – agora, o texto cita “investimento público em educação”.

Essa mudança fará com que sejam incluídas na conta, por exemplo, a renúncia fiscal com o Prouni (Programa Universidade para Todos), que concede bolsas em instituições particulares de ensino superior, e os investimentos do CsF (Ciência sem Fronteiras), que envia estudantes brasileiros para estudar em faculdades fora do País.

Tramitação

O PNE foi enviado pelo governo federal ao Congresso em 15 de dezembro de 2010 e só foi aprovado pela Câmara dos Deputados quase dois anos depois, em outubro de 2012, após ter recebido cerca de três mil emendas.

(*Com informações da Agência Estado e da Agência Brasil)